• "Às vezes é preciso se render ao fantástico, parar de buscar respostas ou conclusões. Às vezes devemos simplesmente deixar o mito e a lenda tomarem os seus lugares. É isso que conta. É isso que nos faz diferente..."

    JBAlves

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

A origem de Holmes16.




Carta ao Jornal do Comércio.


Todos já ouviram falar do prodígio que é ele. Um ser extraordinário criado por um gênio, detentor de uma capacidade quase que infinita para resolver casos que necessitam de grande inteligência e raciocínio lógico.

Um dos corações mecânicos criados
pela "Viúva Negra"
Foi ele quem resolveu o misterioso caso da Liga dos assassinos gaúchos, uma organização que só matava políticos através do envenenamento de bombas de chimarrão e que tinham o intuito de reescrever a história política do Arroio Chuí. Da mesma maneira, foi ele que resolveu o caso da mulher conhecida como "viúva-negra" que roubava, literalmente, o coração de homens poderosos e os substituía por máquinas de controle.

Michael Ostrog
 O
 estripador de Petrópolis
Foi ele também que impediu a realização do Ritual contido no livro Airequecê Ao, impedindo assim a liberação de monstros da mitologia Tupi-Guarani bem no centro de São Paulo.

Mas talvez o caso mais emblemático até o momento tenha sido o do médico Michael Ostrog que havia acabado de se mudar para a cidade de Petrópolis e, sem que nenhuma autoridade suspeitasse, cometeu uma série de assassinatos sangrentos usando o pseudônimo de Jack o Estripador.

Como ele foi capaz de fazer isso? Bem, dizem que toda ideia, filosofia ou poesia nasce de uma interrogação. No entanto, para meu caro amigo Holmes16, isso não é verdade. Para ele, tudo nasce das respostas possíveis dessas infinitas interrogações. Para ele, analisar uma situação e chegar a uma conclusão é que realmente cria algum sentido ou luz, mesmo que temporário, para esse universo estranho, escuro e misterioso no qual ele foi criado.

É a busca pelas respostas que o impelem a continuar, que o fazem tentar entender e ajudar o mundo à sua volta. E desde o início, foi essa busca, e a promessa que fiz para tio-avô, que me fizeram ser seu companheiro, ajudando e registrando todos os passos de sua existência magnífica.

Mas antes de tudo, devo pedir desculpas por minha total falta de educação. Como os bons costumes indicam, é preciso que eu me apresenta de maneira apropriada como um verdadeiro cavalheiro habitante de uma das colônias do Império Britânico.

Meu nome é João Landell Watt. Sou descendente direto do grande inventor escocês James Watt que foi escolhido como construtor de instrumentos mecânicos do Reino, membro da Sociedade de Edimburgo e da Sociedade Real de Londres.

Imagem do inventor Landell de Moura
Meu bisavô imigrou para a 14o. Colônia Inglesa e casou-se com Sara Mariana Landell. Eles tiveram dois filhos, Abelardo e Roberto Landell de Moura Watt. Abelardo vive até hoje em Porto Alegre mas seu irmão, tornou-se o famoso padre cientista e inventor, responsável pelas principais descobertas sobre electromagnetismo, rádio e mecânica dos últimos 50 anos.

Eu nasci em 1906 e, seguindo os passos de meu tio-avô, me mudei para estudar na escola politécnica do Rio de Janeiro. Desde cedo eu sempre quis fazer o mesmo curso que ele e quem sabe entender e ajudar em suas pesquisas e inventos.

Foi no dia 03 de julho de 1900 que ele fez a primeira demonstração de vários aparelhos que ele havia criado tendo como base estudos profundos sobre luz, eletricidade e alquimia que ele aprendeu em Roma. Muitos desses conhecimentos estavam relacionados com a criação de um ser artificial conhecido como Golem, uma criação que faz parte da tradição mística do cabala, mas que só pode ser criado através de um processo mágico complexo e muito raro.

Meu tio-avô, no entanto, havia desenvolvido um método de criação mais efetivo através da união da antiga sabedoria judaica com as últimas descobertas de Charles Babbage sobre máquinas analíticas. Seu primeiro servo era apenas um homúnculo feito de barro, roldanas e uma pequena máquina diferencial mas mesmo assim foi um sucesso completo.

Até hoje eu tenho guardado um velho recorte do Jornal do Comércio noticiando isso. A notícia diz o seguinte:

 "No domingo passado, na cidade de São Paulo, o Padre Roberto Landell de Moura Watt fez uma experiência particular com vários aparelhos de sua invenção no intuito de demonstrar algumas leis e princípios por ele descobertas no estudo da mecânica e da criação descrita no Talmud - tratado Sanhedrin 38b, as quais foram coroadas de brilhante êxito. Assistiram a essa prova, entre outras pessoas e autoridades, Percy Charles Parmenter Lupton, representante da coroa e sua família. Esse foi mais um dia de grandes conquistas do Império Britânico, do partido do congresso nacional e de suas colônias. Que Deus salve o Rei e a Rainha!"


Recorte de Jornal 
Me desculpem, estou me alongando demais como eu sempre faço quando estou um pouco nervoso. E falar do meu avô, de seus inventos e do meu velho amigo Holmes16 sempre me deixa um pouco nervoso.

Pois bem, depois de 1900, meu tio-avô recebeu um prêmio e tornou-se um membro estrangeiro da sociedade real de Londres tal como o meu bisavô. A partir disso, suas invenções receberam apoio e investimento direto da coroa.

Sua missão principal era de aperfeiçoar seu invento para assim criar um exército de homens artificiais. Fato esse considerado por demais urgente devido aos avanços da União Ibérica no restante do continente Sul Americano, principalmente depois dos poucos resultados alcançados após a guerra da Cisplatina entre o Império Britânico do Brasil e as Províncias Unidas do Rio da Prata.

Eu comecei a morar com meu tio-avô em 1928 e estudei sob sua tutela por 5 anos até presenciar sua derrocada pois, depois de vinte anos de pesquisas e descobertas científicas, ele havia gasto todo o seu dinheiro e prestígio na tentativa frustrada de criar um ser mais forte, mais rápido e mais capaz do que seu pequeno homúnculo.

Todas as suas tentativas fracassaram ou porque a criatura não podia ser controlada com segurança no campo de batalha, ou porque, devido ao imenso custo de produção envolvido, não era possível a criação de um grupo muito grande de seres semelhantes.

O médium físico Arthur C. Doyle
e um ectoplasma.
Não sei se vocês podem imaginar como foi revirar séculos de anotações e conhecimentos judaicos e cabalísticos ou mesmo de construir e desconstruir aparelhos infinitamente mais complexos que o mais avançado sistema existente em uma máquina de cálculo de Babbage. Ou mesmo de passar horas e mais horas tentando encontrar uma maneira de transformar sua ciência em uma arma de guerra efetiva.

Mas foi assim, mesmo cansado e desanimado, que ele criou Holmes16 naquela fatídica tarde de quarta feira. Inspirado imensamente pela literatura do médium Arthur C. Doyle, que morrera em julho de 1930, ele tentou criar um novo homúnculo que fosse muito inteligente que que seus fracassos anteriores, mesmo que isso significasse diminuir consideravelmente a sua força.

Hoje eu tenho a impressão que, a sua intenção desde o início, era de criar um ajudante que pudesse ajudá-lo a resolver esse nó górdio. Ele devia acreditar que apenas uma mente incomum seria capaz de solucionar um problema praticamente sem solução.

E é por isso que sempre fico nervoso quando falo dele e de meu amigo. Pois essa foi sua última tentativa antes que uma misteriosa explosão causasse a sua morte e despertasse a consciência em Holmes16.

Um dos braços de Holmes16.
Lembro-me bem daquele dia. Encontrei meu tio-avô, conforme o combinado, no galpão localizado no número 221 da rua dos padeiros, que consistia em dois confortáveis quartos de dormir, uma espaçosa sala de estar, alegremente mobiliada e iluminada por duas amplas janelas e um laboratório completo cheio de tubos de ensaios, máquinas e transformadores ressonantes de Tesla e ferramentas dos mais diversos tipos.

Lembro-me que esse galpão preenchia bem as nossas necessidades, mas o seu aluguel não era tão módico, e na época só conseguíamos pagar o custo por causa do adiantamento que meu tio-avô recebera da Coroa.

Era quarta-feira e eu havia acabado de voltar de uma viagem do Rio de Janeiro e sabia que ele estava trabalhando direto já fazia quase duas semanas, tudo para finalizar a nova versão que seria apresentada ao exército.

Depois que descarreguei minhas malas eu tentei me adaptar novamente aquele ambiente. Evidentemente, a convivência com meu tio-avô não era fácil pois ele tinha hábitos intranquilos e irregulares. Mesmo acordando de madrugada eu podia encontrá-lo de pé as quatro horas da manhã, sem ter comido ou bebido nada, trabalhando incessantemente.

Às vezes ele passava a semana no laboratório mas nada parecia ser capaz de acabar com a sua energia quando tomado por um acesso de criatividade. Hoje eu entendo um pouco mais sobre a sua fonte de inspiração, pois a medida que o tempo passou, o meu interesse por Holmes16 e a minha curiosidade quanto aos objetivos da vida de meu avô gradualmente aumentaram minha capacidade de trabalho em extensão e profundidade.

A face vigilante do detetive.
Lembro-me de entrar na oficina e encontrá-lo ajustando o movimento do corpo do homúnculo que ainda não poderia ser chamado de Holmes16 pois sua consciência, sua alma, ainda não havia se implantado.

Explicando um pouco tecnicamente, movimento é um dos termos que ele usava para designar a máquina central que funcionaria como o corpo do homúnculo. O chassi externo do movimento era feito de uma liga de platina e nela eram parafusadas todas as pontes de encaixe para os braços, pernas e cabeça. O trem de rodagem ficava de um lado da platina, e essa seria suas “costas”. Do outro lado, bem ao lado do mostrador, ficava o sistema que comandava os estágios de movimento e o acerto dos braços e pernas.

Tanto a platina como as pontes recebiam pequenos rubis, cuja finalidade era de funcionar como mancais para os eixos das engrenagens, reduzindo o seu atrito e desgaste.

Os rubis usados eram minerados na Austrália e tinham uma dureza de nível 9 na escala de Mohs, nível esse que representa a resistência que um determinado mineral. E entre as gemas naturais, somente os diamantes as ultrapassavam em termos de dureza.

Corpo de platina e diversos rubis? Você pode entender agora porque era tão caro a construção de cada protótipo. E a necessidade disso era porque a superfície lisa do rubi reduz bastante o atrito nos pivôs dos eixos das engrenagens dos braços, pernas e pescoço, bem como o desgaste nesses mancais, uma vez que são pedras extremamente duras.

Completo, o formato do corpo parecia ter um físico que despertava a atenção do mais descuidado observador. Todos os elementos se conectavam com extrema precisão, com a única finalidade de oferecer ao corpo agilidade e precisão. Sua estatura, era de um metro e oitenta, mas ele era tão magro que parecia mais alto ainda. Seus olhos mecânicos eram agudos e penetrantes, capazes de ver nas mais diferentes matizes do espectro luminoso e as peças polidas acrescentavam à sua aparência um ar de vigilância e decisão.

Com roupas e um chapéu, ele bem que poderia se passar por um homem resoluto. E mesmo suas mãos mecânicas, que invariavelmente brilham ao sol por causa da tinta dourada, possuem uma extraordinária delicadeza similar ao tato, capaz de manipular os mais frágeis instrumentos.

Devo confessar que todo esse trabalho de engenharia, mesmo antes dele adquirir consciência, já instigava a minha curiosidade.

Depois de horas trabalhando finalmente meu tio-avô terminou a montagem e iniciou os testes finais. E apenas quando o homúnculo se vestiu habilmente, e tão rápido quanto um homem, que ele se virou pra mim com um ar cansado mas com uma expressão de orgulho.

E foi nesse momento que ele me disse algumas últimas palavras, palavras que até agora ecoam em minha mente.

- Neto, ele foi criado por mim, mas tem a capacidade de ser maior do que todos nós. Assim, independente do que aconteça, você deve ajudá-lo a encontrar a verdade. A mesma verdade que gravei em sua fronte. Não permita que a minha invenção volte ao pó. Sendo assim, nunca se esqueça. Fazei-o discorrer sobre política e humanidades para que ele deslinde o nó górdio de sua existência, tão facilmente como o fez com seu casaco de tweed.

Eu ainda estava refletindo sobre suas palavras quando a explosão aconteceu.  Justamente quando ele se afastava de mim dizendo que precisava buscar uma peça. A força de impacto da explosão jogou meu corpo para o outro lado da bancada de instrumentos onde desmaiei.

Acordei com o barulho da polícia e dos bombeiros revirando os destroços. Minha cabeça estava dolorida e toda vez que eu fechava os olhos eu via estrelas. Ao meu lado estava Holmes16, sentado em silêncio, observando todos os detalhes a sua volta.

Depois disso as coisas parecem quase como um borrão. A investigação, o processo de liberação de Holmes16 sob minha custódia e supervisão. Nossa mudança para um apartamento no centro da cidade e o início das investigações.
Um pirata com múltiplos braços.

Já se passaram quase um ano desde o dia da explosão e a cada dia eu tento honrar o pedido final de meu tio-avô e continuo ajudando Holmes16 a entender o mundo e a si mesmo. Já somos conhecidos por toda região sudeste e sul do país e mesmo o exército parece ter dado uma folga uma vez que todas as anotações da pesquisa original foram destruídas.

Atualmente estamos trabalhando em um estranho caso de pirataria envolvendo  um cefalópode mecânico mas se quiser nos contactar vocês podem mandar uma mensagem através de um telegrama de Tesla ou mesmo nos fazer uma visita.

Será um grande prazer dividir um Earl Grey com vocês uma vez que meu bom amigo Holmes16 não precisa de líquidos ou alimentos para sustentar a sua brilhante mente.

Agradeço novamente pela chance de contar esse breve relato. Espero que todos se lembrem do meu tio-avô e de suas contribuições para com o reino.

Atenciosamente,

Sir João Landell Watt
Investigador & Mecânico.



Holmes16 em ação.


Notas do Autor:

Apesar de todo esse conto não passar de uma ficção com personagens, locais e situações tiradas da minha imaginação acredito que é importante citar um pequeno adendo sobre a fonte de inspiração que usei para criar dois personagens em especial.

- Sherlock Holmes é um personagem de ficção da literatura britânica criado pelo médico e escritor Sir Arthur Conan Doyle. Holmes era um investigador do final do século XIX e início do século XX que ficou famoso por utilizar, na resolução dos seus mistérios, o método científico e a lógica dedutiva. Se você ainda não o conhece, pare tudo e vá comprar um livro sobre ele!

- Roberto Landell de Moura nasceu em Porto Alegre no dia 21 de janeiro de 1861 e faleceu no dia 30 de junho de 1928. E ele realmente foi um padre católico, cientista e inventor brasileiro, considerado o Patrono dos Radioamadores do Brasil e também um pioneiro do rádio. Seu trabalho foi pioneiro e envolveu experimentos com ondas eletromagnéticas , tendo possivelmente sido o primeiro a transmitir a voz humana por rádio com sucesso.  Por ocasião dos 150 anos de seu nascimento, celebrado em 21 de janeiro de 2011, o Padre Landell de Moura teve seu nome inscrito no Livro dos Heróis da Pátria, através da Lei Nº 12.614, sancionada pela Presidência da República do Brasil em 27 de abril de 2012. 


Obrigado pela leitura e até a próxima aventura de nosso intrépido e mecânico detetive! Se gostou, comente e indique. Se não gostou, apenas comente! ;)





 




Um comentário:

  1. Gostei muito da história, fazia um tempo que não visitava o Escriba Sonolento. Parabéns meu amigo.

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