Passeando pelo Rio de Janeiro, acabei pensando exatamente nisso quando tirei uma foto ao lado de uma estátua que fica nas imediações do Posto 6, na praia de Copacabana. Com certeza, muitos já se acostumaram com a silhueta daquele velhinho que desde outubro de 2002 sempre manteve uma postura de reflexão.
Mas de quem é essa estátua? Porque ela está lá, as vezes vandalizada e muitas vezes assediada?
Eu poderia escrever um resumo, ou mesmo citar algumas das dezenas ou centenas de textos e entrevistas sobre um dos grandes escritores modernistas desse país.
Mas como escrever permite a realização de coisas impossíveis eu resolvi entrevistar a estátua e dentro da minha imaginação, segue abaixo o resultado. Espero que gostem!
Eu: Minha cara estátua, você poderia me dizer quem você representa?
Estátua: Falar dele, Juliano? Pra isso eu preciso de preparo espiritual. Mas posso comentar os fatos. Eu represento um escritor que nasceu em Itabira de Mato Dentro, Minas, em outubro de 1902.
"Alguns anos vivi em Itabira./Principalmente nasci em Itabira./Por isso sou triste, orgulhoso, de ferro./Na cidade toda de ferro,/as ferraduras batem como sinos."
E que faleceu em agosto de 1987.
“E agora José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou”.
Eu: Você então é a estátua de Carlos Drummond de Andrade "o maior poeta que o Brasil já teve", na opinião do poeta e professor de literatura Manuel Bandeira. O que mais você pode me contar?
Estátua de Drummond: Posso comentar que Pedro Bloch já escreveu bastante coisa sobre Drummond na revista Manchete em 1963. Onde disse que ele foi filho de Carlos de Paula Andrade e D. Julieta Drummond de Andrade.
"Meu pai montava a cavalo e ia para o campo/minha mãe ficava sentada cosendo." "De Itabira touxe/este orgulho, esta cabeça baixa."
Desde cedo ele era quieto e só, lia Robinson Crusoé, outro solitário. Fez belas descrições no grupo escolar e em 1916 foi para o Colégio Arnaldo de Belo Horizonte. Em 1925 se casou. Formou-se farmacêutico, mas nunca exerceu a profissão. E em 1925 entrou para a burocracia.
"Tive ouro, tive gados, tive fazendas./Hoje sou funcionário público./ltabira é apenas uma fotografia na parede./Mas como dói".
Por fim, ele se aposentou e aos 84 anos, morreu de insuficiência respiratória.
Eu: Você citou de forma resumida mais de 80 anos de experiências, sentimentos e desejos. O que mais pode me comentar? Principalmente porque para muitos, Drummond sempre pareceu uma pessoa inacessível.
Estátua de Drummond: É verdade, mas a imagem também me parece um pouco injusta. Em 1980 ele comentou exatamente sobre isso quando foi entrevistado pela Revista Veja. Enfim, para conhecê-lo você precisa ler sobre o jornalista, sobre o homem que escrevia para um jornal da época. Lá, ele tinha uma coluna onde, quando queria emitir uma opinião política, emitia. Ou uma conversa lírica, ou um devaneio. Como cronista, em meio às amenidades, ele se permitia reclamar contra o excesso de generais que comandavam o Brasil com o título de presidente da República, assim como se permitia satirizar o Congresso quando, em vez de trabalhar e de reivindicar suas próprias prerrogativas, se tornava um instrumento dócil ao governo. Ele enfim, queria reivindicar uma liberdade que conquistara com preço bastante alto, que é dizer aquilo que se quer dizer no momento em que é forçado a dizer.
"Viu como o bicho não morde? Às vezes, somos criticados pelas qualidades que temos e elogiados pelas que não temos"./"Sou incapaz de atravessar uma sala cheia de gente".
Eu: Interessante! Preciso realmente ler mais sobre suas colunas. Em particular eu conheci Carlos Drummond na escola, principalmente por causa de suas poesias. Pensando nisso, qual era a posição dele como escritor e como ele se via como poeta?
Estátua de Drummond: Ele já disparou essa resposta uma vez.
A posição do escritor pode ser de pé, sentada ou deitada, conforme lhe resulte mais cômodo".
E sobre a poesia ele disse "Eu não me vejo, sabe? Eu sou eu, estou dentro de mim. Não tenho opinião a meu respeito. Faço as coisas quando tenho vontade de fazer ou quando elas saem. Porque às vezes fico parado dentro da minha prisão de ventre mental".
Eu: Mas qual seria, para ele, a missão de um poeta?
Estátua de Drummond: Carlos achava que "A missão do poeta era de fazer versos. Que ele deve fazer versos sobre o que entender: se passar uma pulga e ele achar que a pulga é engraçada, ele faz um poema, uma ode à pulga. Agora, vendo um rio poluído, uma árvore destruída inutilmente, se ele sentir uma emoção correspondente, se se revoltar contra aquilo e sentir a onda poética subir, é legítimo que escreva sobre isso. Num plano maior, sobre a ameaça nuclear, sobre todas as outras ameaças políticas e guerreiras que pairam sobre o mundo. Necessariamente ele não tem a missão de corrigir o mundo, não creio seja essa a missão do poeta. Será uma ilusão supor que a poesia pode contribuir para o direcionamento do mundo num sentido mais justo. Eu acho que a função do poeta é produzir emoção, é despertar no próximo um sentimento de beleza, de alegria, de tristeza — mas sobretudo um sentimento de comunhão com a vida. A vida é múltipla, complexa, não se limita à restauração de direitos democráticos ou a uma ordem em que todas as pessoas respeitem a natureza. Viver é o ato mais importante da vida, e viver envolve todos os compromissos, todas as liberdades possíveis. Então eu acho que o poeta cumprirá melhor sua missão se fizer versos e esses versos forem bons. Se os seus temas coincidirem com os problemas do mundo de hoje, tanto melhor; mas se ele contar apenas a sua dor-de-cotovelo, a sua emoção particular, ainda assim estará fazendo um bem à humanidade. Porque a pessoa que sentir aquela mesma emoção, o mesmo sofrimento de amor, a mesma dor física ou de saudade lendo o poeta — se ele realizou bem o seu poema —, essa pessoa se sentirá confortada. Acho que esse é um dos grandes benefícios da literatura: causar bem aos outros — não apenas politicamente, socialmente, mas pelo simples fato de transmitir uma vivência, uma emoção que é assimilada pelo próximo".
"Pelo menos na minha experiência pessoal, há uma emoção grande e uma alegria no momento de escrever o poema. Uma vez feito é como ato amoroso. Você sente o orgasmo, sai a poluição e depois aquilo acabou. Fica a lembrança agradável, mas você não pode dizer que aquele orgasmo foi melhor do que o outro! O mecanismo não é o mesmo, a reação não é a mesma".
Eu: Profundo e simples ao mesmo tempo. Pensando sobre isso, não posso deixar de perguntar, como era a visão de Drummond sobre Deus?
Estátua de Drummond: Ele era rigorosamente agnóstico. Dizia que uma pessoa que não pode afirmar a inexistência de Deus, da mesma maneira não pode afirmar a existência. E ele dizia não ter, na sua capacidade intelectual, condições para afirmar que Deus existe. E, a não ser os teólogos, ele duvidava que alguém mais tivesse a capacidade para isso.
"Mas eu passo muito bem sem Deus. Não me dá remorso e foi uma conquista da minha vida, à qual agradeço em parte aos meus queridos jesuítas. Porque eles é que começaram a fazer desabar em mim a ideia de Deus como um Todo-Poderoso que regula a vida e a morte das pessoas. Mas respeito profundamente qualquer forma de religião".
Eu: E sobre a velhice e a morte? Como Drummond encarava essa questão?
Estátua de Drummond: Sobre a velhice ele comentou “A maior chateação da velhice é você ficar privado do uso completo de suas faculdades. A pessoa velha tem de moderar o ritmo do andar, porque, do contrário, o coração começa a pular. Não pode fazer grandes excessos. Não tomar um pileque de vez em quando porque isso provocará consequências maléficas. Ela tem de ser moderada até nos amores./ "O medo que tenho é levar uma queda, me machucar, quebrar a cabeça, coisas assim, porque, na idade em que estou, a primeira coisa que acontece numa queda é a fratura do fêmur. Isso eu receio”.
E em 1987 ele comentou que desde menino ele pensava na morte. Ele queria ser cremado, mas não existia crematório no Rio na época. Segundo ele, "a Santa Casa, que vive do negócio de vender túmulos, impede a criação de crematórios. Quis ser então cremado em São Paulo, quando morrer, mas dá tanto trabalho, é preciso levar uma testemunha. uma burocracia. Não quero chatear ninguém, então comprei um túmulo no cemitério São João Batista, aqui no Rio. Tenho lá uma situação privilegiada, porque o meu túmulo está no alto do morro. No mesmo nível do mausoléu da Academia Brasileira de Letras. Então é de igual para igual (risos). Mas. sabe eu tenho pena das pessoas que vão me sepultar, porque para chegar ao meu túmulo é preciso subir uma escadinha estreita. Não vai ser fácil. Mas não tenho culpa, foi o lugar que encontrei para comprar, não tinha outro".
Eu: O que Drummond pensava de sua obra?
Estátua de Drummond: Ele achava que sua obra era uma obra falha, uma obra que podia ser melhor. Ela não teve um desenvolvimento assim consciente, lógico. Fui levado pela intuição e pelo instinto, pelas emoções do momento. "Não creio muito na validade dessa obra. Acho o seguinte: como sou um homem do meu tempo, exprimi paixões e emoções do meu tempo, e isso naturalmente tocou as pessoas. Não vou dizer que, para mim, não é agradável. E realmente agradável quando uma pessoa me escreve do interior do Brasil, de uma cidade qualquer, para dizer que se comoveu com uma coisa que eu fiz. Isso vale mais do que o elogio técnico de um especialista em literatura. Ao escrever poesia, o que procurei fazer foi resolver problemas internos meus, problemas de ascendência, problemas genéticos, problemas de natureza psicológica, de inadaptação ao mundo, como ele existia. Foi a minha autoterapia. O resultado é esse. Não tenho maiores pretensões. As modas mudam muito. Daqui a cinco ou dez anos, terei desaparecido e virão novos poetas, novas formas de poesia, novos critérios, novas tendências".
Eu: Tem alguma ideia do que ele diria dessa nossa conversa?
Estátua de Drummond: Ele já disse isso quando comentou que amanhã ou depois, daqui a cinqüenta anos, um sujeito pode dizer "Olha, descobrimos um poeta chamado Drummond, que tinha uma pedra no meio do caminho. Que coisa curiosa". Ou "que coisa chata". Fica a seu cargo decidir.
Nesse momento o frio vindo do mar acabou com a minha entrevista. Agradeci a estátua e fui embora deixando ao longe aquela figura circunspecta e contemplativa.
--------------------------------------------------------
Carlos Drummond de Andrade, mineiro de Itabira, nasceu em 1902 e era o nono filho do fazendeiro Carlos de Paula Andrade e de D. Julieta Augusta Drummond de Andrade. Estudou em Belo Horizonte, fez o colégio em Nova Friburgo, graduou-se em farmácia em Ouro Preto e mais tarde mudou-se para o Rio de Janeiro para trabalhar como chefe de gabinete no Ministério da Educação e, em seguida, no Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Paralelamente manteve carreira de cronista em jornais importantes da época, como o Tribuna Popular, e de poeta, tendo publicado seus primeiros poemas em 1930. É hoje considerado um dos maiores poetas da língua portuguesa, ao lado de Fernando Pessoa.
(...) Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.
(...) E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.
(Resíduo)
Mais sobre Drummond em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade
http://www.releituras.com/drummond_bio.asp
http://www.revistabula.com/391-os-dez-melhores-poemas-de-carlos-drummond-de-andrade/
http://www.releituras.com/drummond_bio.asp
Respostas da Estátua inspiradas pelas entrevistas:
http://educarparacrescer.abril.com.br/leitura/homem-qualquer-entrevista-publicada-revista-veja-19-11-1980-691226.shtml
http://www.geracaobooks.com.br/literatura/texto2.php
http://www.casadobruxo.com.br/poesia/c/entrevista.htm
http://www.jb.com.br/especial-drummond/noticias/2012/07/06/ultima-entrevista-de-drummond-revela-um-poeta-simples-e-sem-crencas/
http://www.tirodeletra.com.br/entrevistas/CarlosDrummonddeAndrade.htm
http://www.revista.agulha.nom.br/1ecaminha2.html
http://www.jblog.com.br/hojenahistoria.php?itemid=27802
This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0 International License.
Uma das melhores e criativas entrevistas que eu já li. PARABÉNS !!!...
ResponderExcluirAcabei de conheci um pouco mais de Carlos Drummond, através do seu blog, que por sinal é muito bom mesmo, amigo Juliano!
Um abração Juliano.
Lyu Somah
http://lyusomah.blogspot.com.br/2014/08/deus-me-deu-um-dom-e-uma-missao.html#comment-form
Obrigado pelo comentário Lyu! :)
ExcluirExcelente painel sobre o nosso melhor poeta. Foi um homem sincero, que não tinha medo de se afirmar agnóstico, que soube como poucos traduzir o verdadeiro sentido da poesia: exprimir sentimentos e emoções, sem que o poeta precisasse se preocupar com problemas políticos, econômicos ou sociais.
ResponderExcluirPorque o poema é isso: traduzir a própria alma do escritor, da forma mais pura possível.
Parabéns, Juliano, por me dar a conhecer um pouco da obra e da vida de Drummond!
Um abraço!
Obrigado Logan! Apenas uma pequena homenagem para um grande poeta...
Excluir