Uma noite ela surgiu. Vinda de um buraco escondido na realidade de minha sala. De um reboco mal formado da parede por onde escapavam minhas felicidades. Era uma noite fria e chorosa. Daquelas que o vento sempre bate com força nossas janelas, fazendo-nos soluçar de susto.
Por um sibilo ela se apresentou, sábia e solitária, soturna e sanguinária essa gentil senhora disse palavras piedosas a meus ouvidos. Era ao mesmo tempo, lânguidas promessas e parcas oportunidades, belos sonhos e horríveis pesadelos.
Ela se apresentou como uma sobrevivente do século passado. Observadora e curiosa, esquiva e latente ela me revelou que seu segredo de longevidade era roubar da essência masculina dos que não nasceram. Gota a gota esse estranho elixir lhe preservava a vida, afastando-a da sanidade.
Sua solidão era palpável. Suas belas irmãs haviam à séculos se transformado em pó, e a única coisa que a permitia viver sem elas era o palpitar de seu coração cheio do pó de cada uma.
Antigamente ela era dependente das conquistas das irmãs, mas, com o passar das décadas elas envelheceram enquanto o teratoma manteve-se inalterado, talvez seja o que a medicina moderna chama de câncer, células imortais que tardam a deixar o corpo do qual vieram.
Ela, ao contrário de qualquer tumor benigno, se alojara entre suas velhas irmãs enquanto consumia os corpos deixados no crematório, cada pequena partícula de pó se unia a ela lhe permitindo agora caminhar sem a necessidade de sua tão antiga trigeminalidade.
Agora, sua vida consistia em percorrer o mundo através das fendas abertas pela sociedade, pelas feridas das paredes, pelos buracos no vidro e pelas passagens do aço. Levando a seus “clientes”, a chance de elevarem seus nomes à monumentais caminhos.
Era isso que ela me prometia. Se lhe permitisse sugar de minhas sementes, ela me entregaria o periódico que sempre procurei escrever, me permitindo percorrer os caminhos onde poucos homens passaram, o caminho de ouro do reconhecimento mundial e do sucesso.
Um frenesi mundano abalava fundo meus ossos. Pois meus sonhos não são belos, nem honestos, como todo homem mundano sempre sonhei com conquistas e poder, com meus desejos sendo realizados enquanto vivo.
Mas, permitir que minha semente, minha esquiva parceria, errática e maculada, fosse retirada de meu ser para embalá-la mais algumas décadas era mais que meu pobre estômago poderia resistir.
Vomitando meus medos no piso de minha sala eu tentava me controlar. Diferente de meu antecessor, ela não enviara uma misteriosa carta negra se apresentando. Sua presença fétida era nítida perante meus olhos. Acho que os anos lhe retiveram a vida mas não a paciência.
Ela precisava de minha ajuda e me prometia entregar o trabalho que nenhum lápis, pena ou caneta poderia escrever, me permitindo ladear os inesquecíveis exemplos literários de meu país e do mundo.
O buraco em que se estreitava quase não cabia seu corpanzil disforme, sua pele rala e esburacada escondia bem mais que deformidades humanas, ela na realidade, revelava nosso interior, a verdadeira face do homem sem seu verniz de pretensa humanidade.
Ela insistiu, me pedindo para beber de seu elixir vital. Me olhando com órbitas fundas e vazias ele me sibilou todos os sucessos que alcançaria minha medíocre realidade.
Continuando nessa ladainha interminável minha consciência foi se apagando, nesse momento concordei com o desígnio do Teratoma e abracei a criação literária desta como um náufrago abraça o último pedaço do navio.
…
Então afundei…
Minha vida, ou parte dela, me foi sugada enquanto sonhos insanos se agitavam e grunhiam. Senti-me desfalecer e quando recobrei o juízo a solitária senhora havia partido.
Em cima de minha mesa ela havia deixado uma pequena carta junto com uma estranha rosa negra. Segundo sua carta ela mesmo havia cultivado nos recônditos túneis do subsolo aquela rara mutação.
Seu perfume me lembrava uma época passada, habitada por cavalheiros e damas, meretrizes e assassinos. Uma época que meu coração gostaria de habitar e meus sonhos desejam conhecer. A época onde nasceu as gêmeas siamesas que um dia iriam se tornar belas damas rameiras e um aborto cancerígeno.
Agora que ela se foi posso me deleitar por seus estranhos trabalhos, realmente seu pagamento por minha semente valeriam a pena se não tivesse tanta consciência do que fiz.
Não posso me permitir existir numa realidade que não é minha conquista. Me aproveitar da existência daquilo é me sujeitar a seu próprio nível. E venhamos a ser sinceros. Ladrão de vida é algo que poderia suportar, mas nunca me permitiria ser ladrão de idéias, algo tão incomensurável para um verdadeiro escritor quanto sua própria derrota, pois suas palavras são mutáveis como o tempo.
Sendo assim, acredito que não precisarei da ajuda de um teratoma para alcançar meus objetivos. Pois já possuo meu próprio câncer pessoal, a imaginação insensata em minha consciência.
Essa sim me incomoda noites a fio, sempre levando partes de minha vida, sempre me consumindo e me guiando, só permitindo a realidade do tamanho do universo, nada tão pequeno quanto os sonhos dos homens.
…
Texto inspirado na obra: As Piedosas de Frederico Andahazi.
A visita de um Teratoma. by JBAlves is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0 International License.
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