Uma
chuva leve caia de maneira impertinente durante à tarde. Como lágrimas, as
gotas de chuva tentavam lavar os pés enlameados que avançavam pela rua em
direção do velório. Sua mente ainda não conseguia acreditar! Aquele maldito
acidente primeiro ceifou a vida de seu melhor amigo. E agora, poucos dias
depois, ele recebeu a assustadora notícia que a sua ex-namorada e paixão dos
idos de infância também faleceu por causa da gravidade dos ferimentos.
Ele não conseguia pensar direito. Cambaleava pela
rua enquanto uma dor insistente teimava em queimar o seu coração. Sua cabeça,
pulsava no mesmo ritmo que a chuva. E cada gota que batia em seu jaqueta soava
como uma agulha, torta e enferrujada que explodia a sua volta e levava para o
esgoto o que restava de seu autocontrole.
Sentia-se
amargurado e esquecido. E seus pés encharcados quase se afogavam dentro dos
sapatos velhos que faziam par com a sua roupa batida que já não podia ser
chamada de terno por causa da quantidade de remendos que tinha.
O
cemitério jazia escuro no fim da rua. A cada movimento de pernas seu corpo se
aproximava, mas sua mente tentava se agarrar às pequenas lembranças que ainda
restavam. Passando o portão e adentro o patíbulo ele encontrou um lugar
protegido da chuva com vários rostos apagados e silenciosos que olhavam de forma
demorada para a sua forma deplorável.
Com meia dúzia de passos, e deixando
pra trás apenas suas pegadas de lama e um último fio de esperança, ele virou a
última curva entre os jazigos mais antigos. Naquele momento,
ele poderia ser confundido com um louco abandonado, daqueles que perderam o
juízo por opção de uma inspirada insanidade humana dos tempos de outrora.
As gotas, agora se enveredavam por seus olhos, abriam caminho por sua boca e buscavam entrar por suas narinas. E ele, fungava como um cachorro avantajado. Suas mãos trêmulas afetavam a sua maneira de andar e seu corpanzil esbarrava em tudo enquando ele avançava mais um pouco entre as sepulturas.
Uma velha árvore mexia seus galhos e parecia acenar para ele ao sabor do vento.
Embaixo, um número reduzido de amigos e conhecidos dela choravam enquanto
entoavam um murmúrio baixo e repetitivo, baixo e envergonhado, baixo e controlado.
Ele não. Quando viu o caixão fechado, ele não conseguiu
fazer o mesmo. Um choro desesperado e soluçante escapou de sua garganta
num misto de grito e trovão, assustando as crianças pequenas que, como
pintainhos, se esconderam debaixo das asas protetoras de suas mães.
Mas ele não se importava. Como erva daninha ele se
enrolou ao pé do caixão e continuou liberando gradativamente aquele descontrole
emocional, pois, aquela mulher sempre fizera parte de sua vida e agora, tudo o
que tinha cultivado, jazia dentro de uma caixa sem janelas que guardava um corpo
sem vida.
Aos poucos a cerimônia acabou e as pessoas se
afastaram. A noite chegou e abraçou tudo a sua volta e chuva foi diminuindo
enquanto o frio cobrava seu rincão. Sua face já estava seca e quando voltou
para casa ele sabia que a tristeza continuaria embrenhada em seu peito de forma
obcecada ao longo dos anos.
E foi isso que aconteceu. As anos se passaram, e
velha árvore foi posta abaixo e até mesmo o cemitério foi reformado para dar
lugar a novas sepulturas. E para ele, só restava a lembrança amarga daquela
noite chuvosa.
Sobreviveu como pode, se arrastando até os últimos
dias. E sozinho e em silêncio, chegou um dia em que ele resolveu refazer os
mesmos passos de outrora. E o caminho estava totalmente diferente mas a amarga
lembrança ainda pesava em seu coração.
...
No dia seguinte, seu corpo alquebrado e vazio foi
encontrado em cima da mesma sepultura onde ela havia sido enterrada e em suas
mãos um papel amassado e antigo traziam suas últimas palavras.
"A morte me olha com
suas órbitas vazias
E de sua boca
finalmente eu escuto seu canto silencioso
Ela me conta sobre o
futuro e revela toda a minha dor
Me lembrando como era viver, antes de tudo o que aconteceu...
Pois desde aquele dia a
morte sempre me encontrou trajando roupas fúnebres
E suas mãos
desencarnadas sempre apontaram para meu destino
A dor era muito
forte, mas ela sempre me lembrava que eu terei de lutar a cada passo. E que ela sempre
estaria ao meu lado...
Mas eu não consegui.
Deixei que a tristeza fosse pior que a morte.
E que o desespero
fosse o meu guia e meu mestre.
Agora, a morte
estende suas mãos até mim
E de seus dedos posso
ver meus verdadeiros inimigos
E os chamo de
Angústia e Medo.
Assim, finalmente, a
morte se aproxima de mim e me observa.
Pois quando admiti o
erro é que pude entender qual é minha última dança,
Qual é o meu momento
da escolha e de poder.
Agora ela aguarda a
minha descida do morro chamado desespero
E finalmente eu estou
livre, finalmente eu poderei descansar.
E seguindo o seu
sorriso, hoje eu caminharei ao seu lado
E enquanto minha
visão escurece eu posso finalmente ouvir o som,
o som de suas asas...
Gotas de chuva não lavam a dor de um velório by JBAlves is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0 International License.
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